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Pedalando do Alasca a Ushuaia


Pneu furado… principal desgaste na bike (foto: Arquivo pessoal)

Esta história começa dez anos atrás, quando Hamilton Duarte, então estudante de Agronomia, fazia uma trilha de moto no Vale do Paraíba (SP). No caminho, ele encontrou um biker. “Aquilo que impressionou, a trilha era duríssima. O cara me perguntou: ‘Por que você não faz de bicicleta’? Minha resposta: ‘Você tá louco’.

Oito anos depois, Hamilton partiu para os 30 mil quilômetros de pedalada que separam os extremos da América. Com a paixão pelo cicloturismo e também a fotografia nas veias, decidiu realizar o velho sonho de rodar o mundo – ou quase. Acompanhado de uma amiga de infância, a carioca Débora von Jess, ele fez o contrário de muitos aventureiros: saiu do Alasca rumo à América do Sul. “Claro, é só descida”, brinca.

Alasca-Ushuaia: o roteiro não tem nada de inédito mas, em duas rodas, aventura não faltou e poderia virar novela. No caminho, Hamilton encarou modernidade e selvageria, gelo e deserto, passou fome e, por amor, perdeu de cara a companheira de expedição, mas ganhou uma namorada mais tarde.

Nesta época em que está na moda relembrar o Descobrimento, Hamilton banca o desbravador e redescobre a América em duas rodas para o Aventura Brasil

“Finalmente estamos na estrada. No dia 1º de julho o José Primo Anzilotti nos levou até o limite sul da cidade de Anchorage, colado com o Oceano Pacífico. Foi de lá que iniciamos oficialmente a viagem (…) Ao contrário do que muita gente pensa, aqui não existem só ursos, esquimós e neve. Estamos no verão, quando a temperatura está entre 10 e 25ºC e os dias duram em torno de 20 horas. Andar de bicicleta é um ato social por aqui”
(Diário de Bordo, 07/07/98)


O verdadeiro motivo pelo qual Hamilton e Débora escolheram começar a viagem pelo Alasca foi estar lá enquanto ainda fosse verão no Hemisfério Norte. “Na verdade, fizemos uma corrida contra o inverno”, conta ele. “Mesmo assim, pegamos duas nevascas. Pedalar na neve é horrível, é muito úmido e dá medo de cair porque a estrada vira sabão.”

De Anchorage, capital desse estado americano, eles pedalaram pela Alaska Highway até o Canadá, pernoitando na casa de conhecidos ou em campings. No caminho, da montanha eles chegaram à tundra, vegetação rasteira típica dos países frios, e tiveram de se adaptar à cultura local de não-desperdício. No diário de bordo, Débora conta que, num camping em Glennallen, ainda no Alasca, o banho custava 25 cents o minuto. “O Hamilton conseguiu errar e tomar banho no banheiro feminino. Além disso, não sabia que tinha tempo para o banho e enrolou tanto no chuveiro que acabou a água quando estava todo ensaboado.”

A medida que seguiam rumo aos EUA, passariam pelo maior número de parques nacionais (Glacier National Park, Yellowstone e Grand Teton) e reservas possível, além do encontro com ursos, pneu furado… O famoso ‘jeitinho brasileiro’ resolvia qualquer imprevisto. “É muito engraçado, dá um look no disfarce: a gente chega como quem não quer nada, compra uma coca-cola ou um café, vai no banheiro e ainda volta com os bolsos cheios de papel higiênico e 8 caramanholas cheias d’água pra preparar a comida Senta na mesinha na frente do restaurante, come até dizer chega e ainda volta pra pedir informação sobre a estrada. Temos tudo: arroz, feijão, sal e pimenta (que a gente pega no Mc Donald’s), macarrão, café com creme, suco, chocolate, pasta de amendoim, panelas, fogareiro e muito mais!!”, contou Débora.

Mas não houve jeito para convencê-la a seguir a viagem. Cansada, sem muita experiência em longas pedaladas, ela abandonou o projeto após 6.107km rodados, já nos EUA. Débora encontrou um norte-americano em Salt Lake City e preferiu voltar à cidade para ficar com ele. Estão casados até hoje. “E minha bike parece um caminhão”, escreveu Hamilton, que precisou carregar carga quase dobrada.

O show continua – Sem desanimar, seguiu para um parque apelidado de “Canyonlands” e se deparou com uma das estradas mais angustiantes da viagem. “No centro de visitação do parque, a estradinha que desce o Canyon (Shafer Trail Road) parecia coisa de desenho animado. Beira um precipício de quase mil metros. Eram 4 horas da tarde, verifiquei meu mapa e foi impossível resistir … pra
baixo todo santo ajuda… valeu a pena, incrível visual e adrenalina a mil, só que era interminável, pensei que ia morrer no fundo do canyon.”

Sua opção foi seguindo pelas montanhas rochosas, desistindo de conhecer o Yosemite para chegar ao esperado Grand Canyon. Antes, um giro em Moab, a ‘capital do mountain bike’: “a cidade vive e respira bicicleta, tem uma bike store em cada esquina, restaurantes especializados em matar a enorme fome dos ciclistas, muitas trilhas em todos os lugares que você possa imaginar”.

No Canyon, foram 30 km e 1.371m de subida a pé até o topo – “ainda bem que os músculos de caminhar não são os mesmos de pedalar…”. Logo depois, Hamilton deixou os EUA para trás rumando para a América Latina.

Tenho que confessar, não foi fácil. Nem de perto comparado ao pedal nos EUA e no Canadá. Passei por lugares inóspitos e quentes, dormi no meio do deserto varias vezes sem nada por perto, cheguei a ficar uma semana sem banho de água doce e corri muito perigo nas estradas, principalmente na parte inicial. Nada disto me surpreendeu, já estava esperando, mas uma coisa que não esperava, ver foi a falta de respeito e a arrogância de muitos mexicanos para com os gringos, e lógico, para comigo de tabela, pois todos aqui pensam que sou dos americano.
(08/12/98)


Após deixar os EUA, Hamilton atravessou toda a península da Baja Califórnia (praticamente desabitada), de norte a sul. “A estrada para Santo Tomas é um lixo, transito caótico, sem acostamento e cheia de cachorros mortos na beira, que ninguém tira.”

No México, onde virou o ano de 98 para 99, percebeu muitas mudanças – para melhor e para pior. Na lista ‘negra’ perda da filmadora, tombos, equipamentos quebrados, socorro de acidentados – a prancha de surfe que ele acoplou à bike virou maca e acabou partida ao meio… “Aqui no México é incrível a versatilidade das pessoas; o rack dianteiro quebrou pela quarta vez e eu tinha que cortar o cabelo… Na própria bicicletaria, sentado em uma cadeira, em meio a peças e bicicletas, a irmã do dono do estabelecimento cortou meu cabelo, enquanto o pessoal trabalhava na bike.”

Outra boa nova foi conhecer o show de arqueologia dos astecas e maias. Porém, com o cronograma atrasado, Hamilton teve de ser despedir dos mexicanos. “A 2400 metros de altitude, comecei a descer finalmente a Serra Madre oriental em direção ao golfo do México. Foram pelo menos 80 km de descida, parecia que estava de moto, era só pedalar, só no embalo.”

Ao tentar renovar o visto de apenas um mês, Hamilton teve o pedido negado e seguiu a viagem desviando das aduaneiras. Depois de três meses e meio, deixou o México e chegou a Belize, primeiro país da América Central. Na estrada, soube que dois bikers haviam desaparecido entre Belize e Honduras. Seguiu viagem em companhia do ciclista americano Justin, que também rumava para o sul do continente. Começava o trecho mais tenso da jornada incluindo também a Guatemala e El Salvador.

Desespero – Na Nicarágua, Hamilton teve problemas com saque de dinheiro e chegou a passar fome. “… comecei a me desesperar! Estava na capital Nicaragüense, uma cidade violenta e extremamente perigosa. Sabia que no dia seguinte só teria dinheiro para o café da manhã, e que a noite, estaria sem dinheiro para pagar o hotel, e com fome.” Tudo foi resolvido com a solidariedade do funcionário da telefônica local.

Outra má notícia: o biker ficou sabendo que os irmãos Jonas e Stefan Tapper, que com quem esteve no Canadá, haviam desaparecido sem deixar vestígios ao norte de Honduras, logo depois do furacão Mich, que arrasou parte deste país antes de Hamilton chegar lá.

Só na Costa Rica, ele reencontrou a tranqülidade nas visões paradisíacas de praias. Em seguida, veio o Panamá e o reencontro com o medo na Colômbia. “A única pergunta era como chegar à Colômbia, já que não existe estrada pelo estreito de “Darien”, barreira natural entre América Central e do Sul. Tinha duas opções, arrumar um barco à partir de Porto Colon, ou pegar um avião, ambos me levariam à Barranquilla. Com a criminalidade dominante, optei pela segunda.

Depois da Venezuela, o Brasil era a próxima parada.

Que felicidade cruzar a fronteira brasileira, poder falar português, e esquecer um pouco o passaporte. De Caracas até aqui foram 2500 km, e se excluirmos os dias não pedalados, teria uma média surpreendente de 119 km/dia. Realmente estou no auge de minha forma física, e graças a Deus, com a saúde perfeita.
(18/06/99)


A entrada em terreno brasileiro aconteceu por Roraima, na fronteira com a Venezuela. Antes de seguir pedalando, Hamilton e o novo amigo, o polonês Piotr, experimentou a escalada do Monte que dá nome ao estado, com 2.772m de altura. “Da base até o alto do tepui foram mais 3:30hs, e a subida era como uma escada. Ajudando com as mãos e agarrando em tudo que estava ao alcance, fomos subindo e chegamos ao topo às 3:00hs da tarde, nas últimas.”

Veio a vontade irresistível de atravessar o Amazonas e o Pantanal. “Na rota que escolhi não se vê um ciclista na estrada. Eu parecia um marciano”, conta Hamilton. Próximo a reserva indígena dos Waimiri Atroari, havia uma placa em que se podia ler: ‘Evite parar’. O perigo, além dos índios, era encontrar onças, o que foi inevitável. “Não tem nada nos 130 km, nenhum restaurante, vila, apenas mata cerrada, e a estrada.”

“Quando ia pegar a BR 319, considerada a pior estrada do Brasil, teria de comprar uma arma para matar onças se quisesse prosseguir, porque havia chovido muito na região e três pontes tinham caído. Optei por passar cinco dias no barco até Rondônia”, lembra.

O Pantanal aguçou o faro de fotógrafo e Hamilton não cansou de clicar os bichos e paisagens esplêndidas da região, esticando até a Chapada dos Guimarães. Depois seguiu pela Transpantaneira e percorreu mais um trecho de barco até Corumbá, saindo do Brasil e embarcando para o pior trecho da viagem.

“O dia que inicialmente parecia fácil pois, na teoria, seria uma subida e depois uma descida de mais de 1000m, virou um pesadelo. Além do ar rarefeito nos 4600m, o clima era o pior ossível. De frente ao lago Chungará, já no Chile, uma chuva fina em minutos virou granizo, e quando menos esperava estava nevando, com temperatura de 2 graus abaixo de zero.
(26/10/99)


Depois de algumas semanas em casa, hora de virar estrangeiro outra vez. Entre Santa Cruz de la Sierra e Cocha Bamba, na Bolívia, era só subida – “adoro”, garante o biker, que chegou a superar os 4 mil metros de altitude. Naquela estrada, foram 600km de areia “que parecia talco” e pedras sob um calor terrível. Carregando mais água e comida, a bike ficou ainda mais pesada. Apenas o começo… No Chile, as coisas esfriaram e a água que Hamilton deixava para fora da barraca, congelava dentro da garrafa.

Como uma armação do destino, Hamilton decidiu ‘fugir’ do roteiro e passar pelo Peru, país que normalmente não seria visitado. Afinal, estava um mês adiantando no cronograma feito com Débora. Foi o momento de deixar a bike descansando e encarar o lado turista em Macchu Picchu. No meio da trilha inca, conheceu a espanhola Ana Sanchez. “Estava no meio da trilha fazendo chá de coca com um amigo – é um recurso muito usado pelos nativos para amenizar os efeitos da altitude – quando a Ana se aproximou com seu grupo. Ofereci o chá e ela resolveu se juntar à gente.”

Mochileira viajando pela América do Sul há oito meses, Ana hoje revela que se encantou “de princípio” pelo espírito aventureiro de Hamilton. Foi o suficiente para que ela retornasse à Europa e depois ao Brasil para pegar a bike na casa de Hamilton, em Santos (SP), e reencontrá-lo seis meses depois em Santiago, no Chile. Nesse meio tempo, ele ganhou outro presente: realizou o sonho de conhecer a Ilha de Páscoa.

Mas, afinal, onde está o inferno? Na Patagônia. “Quase nenhum aventureiro que planeja ir ao extremo sul da América de bike realmente chega a Ushuaia”, explica Hamilton. Motivo? A rota 40, com ventos de até 120km/h e extremamente seca espalhados pelos seus 150km.

Chega! – Foi ali que pela primeira vez o biker se perguntou o que estava fazendo num lugar assim. “Primeiro estava pedalando pela rota das lagoas do altiplano quando ouvi um ‘crek’.Depois de revirar a bike descobrir que – pasme! – o quadro tinha quebrado. Falei: ‘Acabou a viagem’. Acontece que eu tinha lido sobre isso em algum lugar e por prevenção pedi uma bike de cromo para o meu patrocinador. Assim, qualquer solta consertaria. E foi o que aconteceu: peguei carona num caminhão que faz revisões na estrada e, na oficina da empresa, consegui soldar o quadro.”

Uma última emoção: “Estava pedalando há quatro horas e meia andando a 2,5 km/h com o vento de frente, comendo poeira adoidado, sem a menor chance de parar para armar a barraca e descansar. A Ana estava há pelo menos 5 km para trás, eu nem sabia como. Estava quase chorando de raiva”, descreve. De repente, a Ana surgiu num caminhão, dizendo: “É muito prazer para mim.”

“Se não fosse por ela, talvez não tivesse ligado para o caminhão, mas diante disso, pedi para que ele parasse, subi com a bike na boléia e acabou.” Foram só 25km até o vilarejo mais próximo. “É isso aí. Dos 30 mil quilômetros que eu viajei, 25 foram roubados. E não me envergonho disso.”

No último dia 21 de fevereiro, Hamilton e Ana chegaram ao “céu”, em Ushuaia. “Todo o tempo só pensava nisso: concluir os 30 mil quilômetros. E a sensação de conseguir é indescritível”.

Quase?! “Concluir a viagem era apenas uma das etapas. Esta aventura vai virar livro até o fim do ano, além de exposições, palestras e publicidade para bancar projetos futuros. Sei como é complexo viabilizar uma expedição dessas, afinal foram dois anos só para cair na estrada.”

Voltando no tempo, Hamilton conta que foi Débora quem o incentivou a tornar o sonho real. Com poucas perspectivas de conseguir a verba de alguma empresa, a saída foi aproveitar a lei de incentivo a cultura (lei Rouanet). Daí a idéia de transformar a viagem em livro. De quebra, criaram uma página (www.stcecilia.br/america) onde escreviam o diário de bordo, com alguns trechos estão reproduzidos nesta reportagem, atualizado mensalmente.

Na mala – “Na última hora, acabamos conseguindo patrocínio. Eu já tinha até vendido o carro”, confessa. Cada passo foi cuidadosamente planejado com pesquisas em mapas e na internet. Veja quais foram os equipamentos levados:

  • Bicicleta KHS, quadro de cromoli, 24 marchas;
  • Alforge dianteiro/Caratuva;
  • Alforge traseiro/Ferrino;
  • Barraca Arch-Rival 2P;
  • Saco de dormir resistente a temperaturas de até -10º C;
  • Fogareiro MRS-600;
  • Notebook – Libretto 50CT/Toshiba;
  • Máquina fotográfica Canon EOS A2È;
  • Gravador compacto;
  • Filmadora JVC Handycam.

    Verificando a teoria na prática, Hamilton conclui que a aventura foi diferente do previsto. “Quer saber? Foi menos difícil do que eu imaginava.” Após vencer a primeira grande batalha, ele está procurando a nova rota. Sempre de bike. “Andar de bicicleta e viajar são grandes paixões. A Ana mesmo diz que mesmo nos momentos mais estremos eu fico ‘em off’ enquanto pedalo. Agora eu não sou necessariamente um biker, um esportista. Meu negócio é curtir. Eu sou um cara normal.”


    A expedição Redescobrindo a América teve patrocínio de Ultrafertil e Carbocloro e apoio de KHS Bicycles, MTD House, Systems, Memorial Ecumênico, Cycle Club, Hospital Montreal, Mont-Camp/Ferrino, Foto, Café e Cia e Universidade Santa Cecília.

    Este texto foi escrito por: Luciana de Oliveira