Para vencer os 1.260 metros da Pedra Riscada foram necessários mais de 300 quilos de equipamentos e mantimentos. (foto: Márcio Bortolusso.)
Em julho deste ano a equipe Kaiak de Natura, formada por Márcio Bortolusso, Chander Cristian, Leandro Oliveira, Oscar Andres, Breno Azevedo, o cinegrafista Marco Bortolusso e a bióloga responsável pelo início dos trabalhos de pesquisa do projeto, conquistou, segundo o grupo, a maior via de escalada do Brasil, localizada na Pedra Riscada.
A via conquistada pela equipe, que alcançou cerca de 1.260 metros de extensão, tornou-se uma das maiores escaladas das Américas, consagrando-se junto às extensas rotas do Cerro Torre (Patagônia – até 1.200m) e do majestoso El Capitan (Yosemite EUA 1.100m), duas das montanhas com as maiores e mais importantes paredes para a prática de escalada em rocha do mundo.
Durante os oito dias de conquista, cada escalador teve que enfrentar aproximadamente 6.100 metros de parede, incluindo 2.730 metros de subida pelas cordas fixas e 3.120 metros de rapel. Tanto esforço foi suficiente para destruir algumas das resistentes cordas utilizadas. Com unanimidade, a rota conquistada foi batizada de Vai, mas não cai não!. Na verdade, uma alusão à frase mais repetida durante a conquista da Pedra Riscada.
Saiba todos os detalhes envolvidos nesta aventura, e as dificuldades que a equipe teve que enfrentar para mais esta conquista.
Descoberta por escaladores mineiros, que já haviam alcançado o seu cume por outra face da montanha, a Pedra Riscada encontra-se no município de São José do Divino, a aproximadamente 450km de Belo Horizonte, próxima à divisa dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
A pequena e simpática São José do Divino está localizada no leste mineiro e, apesar de muito hospitaleira, ainda não está preparada para receber visitantes. A bela cidadezinha só possui duas pequenas e rústicas pensões e algumas lanchonetes, sendo que para visitá-la é necessário fazer reserva.
Sua região está sendo reconhecida como o berço das maiores paredes verticais do Brasil, que variam de 250 a 1.200 metros de altura. A Pedra Riscada apresenta-se como a maior destas montanhas, sendo o maior monolito rochoso do país e um dos maiores das Américas. Atualmente, consagra-se como a montanha que possui as maiores paredes escaláveis do Brasil, com 1.480 metros de altura em relação ao nível do mar e abrigando faces de até 1.200 metros de altura.
Encanto – A grandiosidade de tal pedra impressionou Márcio Bortolusso, fotógrafo de aventura e escalador especializado em conquista de grandes paredes. Durante meses, desde que ouviu falar de tal montanha, Márcio desenvolveu um projeto para a conquista de uma nova via em tal pedra. O projeto foi realizado pela Photoverde Produções, empresa especializada em documentação e divulgação das temáticas Atividades ao Ar Livre, Cultura Regional e Natureza.
Diante do real valor da Pedra Riscada como patrimônio natural (desportivo e científico) e da necessidade de preservação de toda a sua região, o projeto envolveu uma série de ações de cunho social e ambiental, agregadas ao objetivo desportivo central.
O grupo de escaladores levou oito dias para conquistar a face oeste da montanha, considerada a mais extensa e impressionante. Normalmente, em um Big Wall escalada de grandes paredes em que é necessário realizar pernoites, comer e todas as demais necessidades do dia-a-dia na própria pedra deve-se levar o mínimo de peso possível com o intuito de ganhar velocidade de progressão.
Foram necessários aproximadamente 300 quilos de equipamentos e mantimentos, que foram rebocados em dois grandes barris de 200 litros cada. Além do básico de comida, água e equipamentos pessoais, a equipe levou aproximadamente 600 metros de corda, uma furadeira com bateria sobressalente, equipamentos de filmagem e fotografia, dezenas de quilos de ferragens e demais materiais de escalada.
A escalada ofereceu um alto grau de exposição e dificuldade aos escaladores, devido ao estado precário da rocha em alguns trechos e a escassez de agarras. Em sua maioria, a via apresentou minúsculas agarras quebradiças entre intervalos de escalada sob técnica de aderência.
Dificuldades – A inexistência de fendas e furos pouco permitiu aos escaladores a utilização de equipamentos móveis, capazes de complementar a segurança entre os distantes grampos que eram fixados. Era necessário fixar as proteções o mais distante possível dentro do limite técnico e psicológico de cada escalador para tentar ganhar tempo e alcançar o cume antes que as provisões acabassem, disse Marcio Bortolusso.
Foram realizadas passagens de considerável nível técnico com uma distância de até 60 metros entre os grampos de segurança que eram fixados. Ao contrário de outras modalidades de escalada, não podíamos cair, pois qualquer vôo poderia ser fatal, completou. Apesar de parecer incompreensível para algumas pessoas, todas as técnicas utilizadas durante a conquista fazem parte do contexto deste estilo de escalada.
Devido à proporção da parede, a estratégia escolhida consistiu na instalação de cordas fixas para subida e descida em cada trecho conquistado diariamente, até que o grupo alcançasse uns 500 metros de altura. Conforme os planos da equipe, aos 500 metros o grupo alcançou um local perfeito para a instalação do Acampamento Avançado. Deste ponto em diante, todas as cordas fixas e demais equipamentos utilizados na conquista das primeiras centenas de metros da parede foram recolhidos e a equipe transferiu o Acampamento Base, localizado no sopé da montanha, para o novo acampamento aéreo.
Em um Big Wall, cada escalador deve trabalhar arduamente durante várias horas consecutivas, ao longo de vários dias. Os trabalhos começam bem cedo e se estendem até a noite. Não basta apenas escalar, é preciso enrolar centenas de metros de corda, rebocar toda os pesados equipamentos parede acima, cozinhar para todos os integrantes, fixar proteções no granito duro através do uso de uma marreta e um batedor munido de uma broca, entre vários outros trabalhos braçais.
Na conquista da Pedra Riscada houve dias em que a equipe teve que trabalhar mais de 25 horas ininterruptas, começando os trabalhos por volta das 3h45 da manhã e encerrando seus trabalhos às 5h45 do alvorecer do dia seguinte. Sempre sob má alimentação, bebendo pouca água em dias muito quentes e com a energia se esgotando.
Riscos e dificuldades – Foi a partir dos 500 metros que os escaladores começaram a encontrar os maiores riscos e dificuldades. No sexto dia de conquista, programado para o ataque ao cume, as provisões já se encontravam no fim devido a uma série de imprevistos. Neste mesmo dia a última bateria da furadeira acabou, após um ótimo rendimento até os 940 metros de altura.
Desse ponto em diante, todas as proteções fixadas grampos e chapeletas – tiveram de ser abertas à mão. Ou seja, cada escalador tinha de ficar sustentado por um micro ganchinho metálico de mínima estabilidade – denominado cliff – que é encaixado em alguma agarra, enquanto fixava uma proteção através de marretadas.
Esta operação é considerada como um dos piores momentos de uma escalada, pois qualquer vibração pode desencaixar ou mesmo quebrar a agarra que suporta o cliff, ofertando quedas possivelmente perigosas. Somente quem já ficou suspenso em um cliff por alguns segundos entenderá o quanto precisamos de um bom controle psicológico. O problema é que algumas proteções podem levar até meia hora para serem fixadas, lamenta Márcio.
Pra piorar a situação, por volta dos 1.030 metros de altura, começou a chover. Após a chuva, o grupo ainda tentou continuar escalando, mas a pedra estava muito escorregadia e apresentava qualidade precária, com muitas agarras quebradiças, o que forçou a equipe a voltar para o Acampamento Avançado. Foram mais de 500 metros de descida, com um longo rapel noturno após a frustração de terem fracassado na investida ao cume.
A partir deste dia, a situação se complicou. Devido ao forte sol, o grupo bebeu muito mais água do que havia planejado. A água estava no fim, sendo que alguns dos escaladores só tinham uns 100 ml do líquido para todas as necessidades. Em alguns momentos, o desespero foi tanto que alguns dos integrantes tiveram que chupar alguns liquens que brotavam da pedra, ou mesmo passar a língua em algumas cactáceas umedecidas pelo orvalho noturno para obter algumas gotas de água.
Após horas subindo pelas cordas fixadas no dia anterior, quando o grupo ia recomeçar a escalada do trecho onde haviam desistido, voltou a chover. Quando a chuva se encerrou, mesmo com a pedra escorregadia, Márcio decidiu tentar. Afinal, era a última chance do grupo, se não conseguissem alcançar o cume neste dia deveriam descer.
Quando o escalador percebeu que não conseguiria alcançar o ponto desejado para fixar uma proteção e que estava prestes a sofrer uma enorme queda, devido à falta de aderência com a pedra e às constantes agarras que quebravam em sua mão, Márcio foi obrigado a saltar em direção de uma pequena touceira que se encontrava presa ao fundo de uma canaleta, que se estendia à sua esquerda. O medo foi grande, pois a pequena touceira encontrava-se escorregadia e estava fixa à pedra através de finas raízes, afirma Márcio. Nunca um metro e meio foi tão extenso para mim, relembra.
Para piorar ainda mais o desespero do grupo, a qualidade da rocha tornou-se ainda pior acima dos mil metros de conquista, sendo que algumas das proteções fixadas não ofertavam segurança. Alguns dos grampos fixados, que normalmente deveriam suportar mais de uma tonelada de carga, eram arrancados com as próprias mãos.
Alcançando o cume – A equipe Kaiak de Natura alcançou o cume da Pedra Riscada pouco antes das nove horas da noite, após 1.260 metros de via conquistada ao longo de sete dias de árduos esforços. Apesar dos planos de realizar algumas pesquisas na misteriosa mata do cume da pedra, o grupo precisou descer rapidamente. Os escaladores já estavam começando a sofrer de inanição, devido aos vários dias sob má alimentação e uma abstinência alimentar de mais de 16 horas, desde que o último farelo de comida se acabou.
Para complementar a forte fome e sede durante a longa descida, a Kaiak de Natura ainda teve que enfrentar más condições climáticas. A temperatura caiu consideravelmente e um forte vento, com velocidade estimada de 70 km/h, começou a atingir o grupo. Em um Big Wall os trabalhos tornam-se sobre-humanos, com as capacidades técnicas, psicológicas e físicas do escalador sendo exigidas ao extremo, o que resulta em grande perda dos reflexos e estafa geral. É durante a descida que ocorre a maioria dos acidentes em grandes paredes e os escaladores ainda precisaram de mais um dia para completar a descida dos 1.260 metros, ao longo de 22 partes com uma série de fracionamentos intermediários.
Alguns animais avistados recentemente na pedra entusiasmaram os pesquisadores do projeto, como uma grande coruja branca, talvez de uma espécie ainda não catalogada pela ciência; uma rã, avistada em plena parede vertical, provavelmente espécie endêmica e sem catalogação e um puma, felino tido como extinto na região. Como não há trilhas até o topo da pedra, especialistas afirmam que a vegetação do extenso cume é um dos fragmentos remanescentes da Mata Atlântica em melhor estado de conservação de Minas Gerais, talvez imutado.
Dentre as principais ações, o projeto Pedra Riscada visa desenvolver um inventário da fauna e flora regional, suficiente para o início de trabalhos de pesquisa de maior profundidade; conscientizar as comunidades da região quanto à preservação do patrimônio natural local; assessorar os órgãos locais e realizar a abertura de processo para a criação de uma Área de Proteção Ambiental, única forma capaz de assegurar a perpétua conservação deste rico patrimônio natural. Desta forma, serão criados subsídios para a exploração racional do potencial turístico da região, a exemplo do que vem ocorrendo em outras localidades do estado que se desenvolveram sócio-economicamente através do turismo originário de pólos de Escalada.
Em breve a Photoverde Produções em parceria com a Pimenta, Stúdio de vídeo design inovador que promete revolucionar o mercado nacional de filmes de aventura, estarão lançando um vídeo documentário sobre a expedição. Também estão previstos o lançamento de um Website da Photoverde, uma série de exposições itinerantes e uma palestra no Eldorado Adventure Congress 2002, evento realizado durante a Adventure Sports Fair deste ano, no dia 01/11.
Patrocínio – Reconhecida como uma empresa de grande preocupação com o patrimônio natural brasileiro, a Natura se entusiasmou com a idéia e tornou-se a patrocinadora exclusiva do projeto. A Kaiak de Natura também contou com os imprescindíveis apoios: DeWALT, fabricante de excelentes modelos de marteletes electropneumáticos à bateria, conhecidos pelos escaladores como furadeiras de alto impacto; Kailash, um dos principais fabricantes de equipamentos para atividades ao ar livre do Brasil, única empresa brasileira a possuir e produzir produtos de escalada homologados pela UIAA; Snake, principal fabricante de calçados para montanhismo do Brasil, produzindo ótimos modelos de botas e sapatilhas; Solo, um dos principais fabricantes de roupas técnicas para atividades ao ar livre do Brasil; Prefeitura Municipal de São José do Divino, que além de ceder hospedagem e alimentação, apresentou-se muito prestativa e receptiva. O projeto também conta com a parceria da Pimenta Studio (www.pimentastudio.com.br) e da Photo & Cia (www.photocia.com.br), laboratório de fotografia de alta qualidade com destaque no tratamento da fotografia Outdoor.
Márcio Bortolusso (photoverde@ig.com.br): 27 anos, 7 de escalada. Publicitário, atua como fotógrafo de Aventura e Natureza há 7 anos, já tendo trabalhado com algumas das principais revistas, jornais e estúdios do Brasil. Montanhista há mais de uma década, dentre outros feitos, foi um dos conquistadores da via Ilusão do Sertão (D4 5º VIIc E3 440 m / 9 enfiadas – PE), 2º maior via das regiões Norte e Nordeste do Brasil. Membro fundador do CEG Centro Excursionista Gravatá e diretor da Photoverde Produções, desenvolve projetos de cunho social, desportivo e exploratório.
Este texto foi escrito por: Webventure
Last modified: outubro 18, 2002