O trekking mais difícil da prova (foto: Arquivo pessoal)
Há mais de seis meses eu não participava de uma corrida de aventura expedicionária, com mais de 250 quilômetros e em um lugar selvagem. Foi quando fiquei sabendo do Desafio Aysen, que iria ser realizado no Chile (leia aqui).
Eu já tinha participado de outras quatro provas na Patagônia argentina e chilena, mas nunca tinha ouvido falar do local desta prova: Coyhaique, a 1.300 quilômetros de Santiago, uma cidadezinha com 40 mil habitantes, a última com uma infraestrutura razoável no sul do Chile.
Esta corrida de aventura também tinha uma característica diferente, muito interessante: ela seria enfrentada em dupla e em estágios, com pausas noturnas nas áreas de camping. Eram três dias de competição, com 100 quilômetros em média em cada um, e as modalidades trekking, mountain bike, canoagem, cavalgada e orientação.
Eu fiz dupla com a atleta Marcia Blanes, que, apesar de já correr aventura há alguns anos, nunca tinha feito uma prova internacional e em clima frio. Esta também seria sua segunda prova com mais de 250 quilômetros. Juntos, já havíamos participado de um Adventure Camp. Somando todos esses fatores, sabíamos que nosso objetivo não seria buscar resultado, mas vencer os desafios de Aysén, nome da região.
Programamo-nos para chegar um dia antes da largada, para nos aclimatar e preparar os equipamentos com tranquilidade. Mas, um problema com uma das bikes no aeroporto fez com que perdêssemos o voo e só embarcássemos no dia seguinte. Assim, chegamos à Coyhaique duas horas antes do início do briefing técnico e sem a bicicleta da Marcia, que chegaria depois.
Atletas e jornalistas de diversos países (Argentina, Chile, Uruguai, México, Venezuela, Equador e Brasil) se reuniram para receber os detalhes da prova: a largada seria de bike, às 8h30 do dia seguinte. Mas, naquela noite, ainda precisávamos deixar nossas caixas de equipamentos com a organização, para que as mesmas fossem transportadas até os acampamentos.
A largada aconteceu na praça principal da cidade, após pronunciamento de autoridades locais. Os primeiros quilômetros já demonstravam a beleza da região a ser explorada: céu azul, montanhas com picos nevados e lagos cinematográficos, que foram as características dos primeiros 60 quilômetros de pedal apesar de eu estar em uma corrida, não me contive e fiz algumas fotos e filmes durante o percurso.
Pedalamos em estradas com muito cascalho. Marcinha tomou um tombo, mas rapidamente se levantou e voltou à bike, mesmo com o braço ralado. E, por volta das 11h, fizemos a transição para o trekking. Eu já tinha alerto-a de que este seria um trekking difícil e técnico. Porém, experimentamos situações muito tensas, as quais fazia tempo que eu não passava.
Toda a caminhada era por íngremes aclives e declives pelo mapa, a ascensão acumulada passaria dos 3.300 metros. Mas, eu não imaginava que tudo seria feito quase que totalmente sem trilhas a indicação das trilhas no mapa era, na verdade, uma sugestão de rota.
Para piorar, em altitudes médias a vegetação é muito fechada e densa, com pinheiros, bambus e troncos de árvores caídos. Por isso, a progressão foi bastante lenta e desgastante. Depois, a partir de determinada altitude, a mata fechada dava lugar a pedras soltas conforme caminhávamos por essas lascas, uma pequena avalanche se formava. Como esse terreno íngreme era perigoso, muitas horas foram consumidas nessas montanhas. Cruzamos uma cadeia, descemos à base de uma das montanhas e então subimos outra.
Pelo tempo que estávamos ali, comecei a perceber que teríamos problemas. A previsão era de esse trekking durar de 10 a 12 horas. Por isso, tínhamos comida suficiente para tal período. Mas, com a lenta progressão, esse tempo iria se estender. Então, começamos a racionar comida. Também nos juntamos com uma equipe de chilenos, nos ajudando mutualmente nos trechos mais perigosos e na escolha das rotas.
E assim, entramos na primeira madrugada de prova. A fome aumentava e a comida ficava cada vez mais escassa. Mas eis que, de repente, como uma ajuda divina, encontramos um pé de cereja completamente carregado. Ficamos mais de 15 minutos jantando a fruta colhida.
Seguimos na caminhada, rastreando os melhores pontos de passagem na mata, um trabalho não muito eficiente no escuro. Então, exaustos, às 3h, resolvemos dormir e esperar o amanhecer. Antes, o último sanduíche foi devorado.
A navegação foi bem mais fácil ao amanhecer, afinal dava para enxergar o melhor caminho. Mas, não tínhamos nada para comer. Às 8h30, passamos por mais um posto de controle no alto de uma montanha dali, ainda restava uma descida de 1.600 metros de desnível até o acampamento.
Mas o que pareceria fácil levou muitas horas. Por duas vezes, descemos a montanha na direção correta, mas por um caminho sem trilha e com penhascos de pedras instransponíveis. Tínhamos, assim, de retornar para procurar outra opção de caminho.
A falta de comida e o desgaste também provocavam fortes dores de cabeça. Paramos para preparar uma sopa que um dos atletas chilenos levava, que foi dividida entre as duas equipes. Aquele caldinho salgado com pedacinhos de macarrão foi a salvação! Seguimos despencando pela montanha, segurando em raízes e troncos caídos, até quase o acampamento.
Mas, restava ainda atravessar um rio caudaloso, com água gelada e fortes corredeiras. Andamos pela margem para buscar o melhor ponto ou outra opção de travessia, mas a saída era mesmo cair na água, nadando forte antes de a corrente nos carregar rio abaixo. Eu encorajei a Marcinha, que passou por maus bocados nessa hora ela acabou sendo resgatada por voluntários que assistiam à perigosa operação.
Finalmente chegamos ao acampamento e o trekking previsto para ser feito em 12 horas somou 30 horas! Armamos a nossa barraca, nos secamos, comemos e dormimos, para nos recuperarmos para terceira etapa da prova, no dia seguinte. Uma noite superestrelada, em meio a montanhas e a lagos gelados, sempre ajudam na recuperação de qualquer ser.
No último dia, começamos com 80 quilômetros de mountain bike. O trajeto era tão bonito que tivemos a sensação de ele ter passado muito mais rápido.
Na transição, um dos atletas da dupla seguia um trecho a cavalo, enquanto o outro descansava. Montei na égua Muneca e atravessei uma serra, num percurso de 22 quilômetros. O animal era forte, mas teimoso. Depois de 1 hora de desencontros, chegamos a um acordo. Progredimos bem, abrindo vantagem em relação a outras equipes, e voltamos para a área de transição.
Ali me encontrei novamente com a Marcinha, com a qual segui de bike rumo à linha de chegada. Terminamos esta última etapa na segunda posição e, no acumulado dos três dias, conquistamos o quarto lugar.
A grande satisfaça dessa aventura foi ter conhecido mais um lugar de beleza ímpar, completamente preservado. E de ter passado por mais uma experiência de vida extrema mas com um desfecho positivo. E hoje, já em casa, não vejo a hora de partir para a próxima!
Este texto foi escrito por: Rafael Campos, especial para o Webventure
Last modified: janeiro 26, 2012