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Terror e aventura na Cordilheira Branca


Vista de dentro da barraca (foto: Alta Altitude)

O que leva pessoas a saírem do conforto de suas casas, enfrentarem frio em temperaturas de até 40 graus negativo, tempestades, avalanches, possibilidades de sofrer algum acidente grave e até morrer só para chegar ao cume de uma montanha, hastear uma bandeira de seu país, tirar uma fotografia e descer?

“O que mais atrai a escalada em montanhas é a sua dificuldade. Não quero escalar num lugar em que muitos já escalaram”, diz Dayen Belchior, brasileiro que ficou cego por cerca de 10 dias, após uma expedição que resultou na morte de três companheiros chilenos. São os momentos deste desafio que este Aventura Brasil destaca.

Os montanhistas Dayen e Rodrigo Gonçalves resolveram passar o mês de julho e agosto deste ano escalando em algumas montanhas da Cordilheira Branca.

Lá, conheceram um grupo de oito chilenos que subiriam a mesma montanha, o Huandoy Norte, coincidinho também com a época e as rotas. Decidiram se unir para realizar o ataque ao cume. Resultado da expedição: três chilenos mortos.

A idéia de escalar outras montanhas permaneceu firme na cabeça dos montanhistas, apesar do desastre. Os dois mineiros de Belo Horizonte escalaram o Pisco Oeste e desistiram do Huandoy Norte, em decorrência de grandes avalanches.

Dayen, em conjunto com um capitão e um soldado da Unidade de Resgate de Alta Montanha da Polícia Nacional do Peru, escalou o Huascarán Norte. Perdeu seu visor no caminho de volta, mal sabia que enfrentaria dez dias de cegueira em decorrência da forte claridade. Por sorte, um mal reversível.

Confira a história desses brasileiros que, apesar de terem conhecido o terror nas montanhas do Peru, não desistiram das escaladas e até tiveram fortalecido seu amor pelo esporte.

Oito meses de estudos, aclimação e preparação foram necessários para que Dayen e Rodrigo, dois montanhistas brasileiros – enfrentassem o desafio de escalar algumas das montanhas da Cordilheira Branca, no Peru.

“A Cordilheira Branca foi a escolhida por oferecer uma tremenda variedade de escaladas, sendo o destino ideal para montanhistas experientes e interessados em picos isolados e muito altos. Por outro lado, ela não tem os problemas burocráticos enfrentados numa expedição aos Himalaias”, disse Rodrigo Golçalves, que escala desde 1992.

Existe uma grande quantidade de gelo nesta região do Peru, muito maior do que em outras montanhas do continente sul-americano, fazendo com que as escaladas sejam duras e técnicas. As montanhas também são mais verticais, o que aumenta bastante o grau de dificuldade.

Início da expedição – A expedição iniciou-se no dia 18 de junho desse ano, quando Rodrigo Gonçalves chegou sozinho ao Peru. Seu parceiro, Dayen Belchior, estava em Belo Horizonte para concluir o semestre letivo antes de embarcar na aventura.

Durante o longo processo de aclimação, Rodrigo conheceu um grupo de chilenos que também iria tentar a escalada do Huandoy Norte (6.395m, o mais alto dos Huandoy) e o Chacraraju Oeste (6.112m) nas mesmas datas e pelas mesmas rotas que os brasileiros haviam planejado. “Eles rapidamente se tornaram grandes amigos e nos convidaram (a mim e a meu parceiro, que ainda não havia chegado) para nos juntarmos à expedição deles. Logo aceitei o convite e passamos a compartilhar comida, barracas e combustível. O dia a dia juntos fortaleceu em muito a nossa amizade”, relembra Rodrigo.

Ficou combinado que haveria três acampamentos antes do ataque ao cume: o acampamento 1 seria a 4.900m de altitude; o acampamento 2, a 5.495m e o acampamento 3, a 5.896m.

Após a chegada de Dayen e sua devida aclimação, os dois brasileiros subiram para o acampamento-base-avançado, onde dois chilenos já haviam montado o acampamento 1 e o acampamento 2. “Três chilenos já haviam cruzado o imenso glaciar do Huandoy e montado o acampamento 2, na base de uma canaleta vertical de gelo, com 400m de altura. Mas disseram que havia muita neve fofa pelo caminho, o que tornava a escalada mais perigosa e fisicamente muito desgastante”, relatou Rodrigo sobre a equipe de ataque ao cume.

O plano da equipe era escalar a canaleta naquela mesma noite (17 de junho) para montar o acampamento 3, o último antes dos 500m de ataque final ao cume. Naquele último acampamento, que estaria a 5.895m, os três chilenos esperariam pelos dois brasileiros para que chegassem juntos ao topo do Huandoy, a 6.395m de altitude.

Este foi o início do que se tornaria uma tragédia que entristeceu o Chile.

“Na manhã do dia 18, os montanhistas do grupo de ataque fizeram contato por rádio e disseram que haviam escalado a noite inteira e estavam muito cansados, mas que faltavam somente 100m para terminarem a escalada da canaleta e, que após fazerem isto, iriam montar o acampamento 3 e descansar”, relembra Dayen sobre o dia trágico. “Reparamos que muitas avalanches grandes estavam caindo pela parte central do glaciar, à esquerda de onde estava posicionado o grupo de ataque. Porém, longe deles”, disse Rodrigo.

Anoiteceu e os montanhistas perceberam que o grupo de ataque ainda não havia entrado em contato. “Pensamos que eles deveriam estar dormindo, muito cansados após a escalada da canaleta de 400m”, disse Dayen.

A falta de notícias e o aumento das avalanches deixaram toda a equipe em pânico. “No dia 19, dois chilenos (Raul Contreras, o chefe da expedição, e Gaspar Rodríguez) subiram até o colo a 5.350m, entre o Huandoy Leste e o Pisco Oeste, para tentar, sem sucesso, fazer contato por rádio. Ao voltarem para o acampamento 1, Raul pediu ajuda a um grupo de quatro aspirantes de guias de montanha peruanos, formando um grupo de resgate para ir até a base da canaleta e tentar descobrir o que se passava”, conta Rodrigo, relatando que o único achado fora uma barraca vazia próximo ao acampamento. Os brasileiros permaneceram no acampamento.

No dia seguinte, após a tentativa frustada da primeira equipe, outro time de resgate iria tentar localizar os desaparecidos. “Já estávamos desacreditados, mas eles poderiam estar feridos e presos numa altitude de 5.895m, precisando de ajuda”, diz Dayen. Foram enviados dois grupos de resgate: um liderado por Raul e outro por Rodrigo. “Uma equipe faria o mesmo caminho do dia anterior; a outra, liderada por mim, tentaria contornar o Huandoy Leste para chegar ao acampamento 3 pelo outro lado da montanha”, conta Rodrigo.

As duas equipes levantaram às 5h. Primeiro saiu uma e, como fora combinado, a segunda só sairia após o primeiro grupo enviar instruções. “Após três horas veio a confirmação: os três chilenos estavam mortos. Todos eles foram encontrados, ainda encordados, na entrada da canaleta, um pouco acima do acampamento 2. Um deles estava dentro de uma fenda no gelo”, relata Rodrigo, que foi o primeiro a receber a notícia. “Com a confirmação, alguns amigos dos chilenos, que ainda estavam no acampamento, começaram a chorar muito. Foi um clima terrível!”, diz Rodrigo.

Resgate dos corpos – Depois de localizados os corpos, o passo seguinte seria levá-los montanha abaixo. A segunda equipe se juntara ao primeiro grupo para tentar ajudar no resgate. O outro brasileiro, Dayen, ficou no acampamento-base para contactar a Unidade de Resgate de Alta Montanha da Polícia Nacional do Peru, que está baseada na cidade de Yungay (perto de Huaraz) e foi chamada neste mesmo dia.

“Enquanto tentávamos juntar os corpos, uma avalanche repentina caiu pela canaleta, a apenas cerca de dez ou quinze metros de nós, com rochas grandes e blocos de gelo do tamanho de carros. Ficamos paralisados por alguns instantes e decidimos abandonar os corpos lá mesmo”, relata Rodrigo. “Demoraríamos muito tempo para resgatar os cadáveres e, naquelas condições, fatalmente morreríamos também”.

Depois de 12 horas, tentando retirar os corpos, as equipes voltaram ao acampamento 1. Na mesma noite, chegaram cerca de vinte homens da Unidade de Resgate. Todos dormiram no acampamento para começar o trabalho logo pela manhã. “Cada corpo foi carregado por cerca de sete homens até a base da polícia, na cidade de Yungay”.

Junto com os três chilenos mortos, o restante do grupo cinco chilenos voltou num avião para Lima, a capital peruana. Lá, os montanhistas tiveram consciência de como o caso havia repercurtido. Havia imprensa de todo o país e também do Chile. De lá, o grupo seguiu de avião para casa.

Laudo – A Polícia Nacional do Peru concluiu em seu laudo que, pela posição dos corpos, uma placa de gelo se soltou, formando uma pequena avalanche perto do topo da canaleta. Esta avalanche, provavelmente, atingiu o primeiro alpinista do grupo de ataque, que estava encordado aos outros dois. Ele caiu e arrastou os companheiros 400m abaixo.

Os brasileiros voltaram à cidade de Huaraz, onde descansaram por uma semana, se preparando para o próximo passo: escalar o Huascarán Sul (6.768m), a montanha mais alta do Peru e a quinta mais alta da Cordilheira dos Andes. Nem a tragédia os desencorajou.

“Alpinistas de vários países vieram nos cumprimentar pelo feito e prestar condolências por nossos amigos falecidos”, diz Dayen.

No dia 02 de agosto, Dayen e Rodrigo aproveitaram para visitar alguns amigos carregadores peruanos que vivem no pequeno vilarejo de Huashao, aos pés do maciço Huascarán, onde se localiza o Huascarán Sul. No caminho, os expedicionários visitaram a cidade de Yungay, onde está a Unidade de Resgate de Alta Montanha da Polícia Nacional do Peru. “Esta unidade é muito bem preparada. Conta com dois helicópteros e mais de três milhões de dólares em equipamentos de alpinismo. Todos os seus membros são pára-quedistas e alpinistas e estão constantemente fazendo cursos para aperfeiçoamento”, comenta.

Durante a visita, eles fizeram amizade com o corenel Luis Otero, comandante da unidade, e com o capitão Nilo Cuba, comandante do grupo que resgatou os corpos dos chilenos. Sabendo da intenção dos brasileiros de escalar o Huascarán Sul, Cuba disse que também pretendia escalar esta montanha nos próximos dias e os convidou para irem juntos.

Mais um desafio – Convite aceito e já agendado para o dia 4 de agosto. Ao todo, quatro pessoas fariam a escalada. “Encontramos com o capitão Cuba e o soldado Hélio e fomos para o vilarejo de Musho, onde começa a trilha para o maciço Huascarán. Chegamos ao acampamento-base, a 4.100m de altitude, por volta das 17h”, relata Rodrigo.

Enquanto Dayen e os peruanos subiam para o acampamento-base-avançado, a 4.750m de altitude, Rodrigo permaneceu no acampamento para se recuperar do cansaço, como ele mesmo diz. Porém, uma infecção na garganta impediu que o mineiro continuasse a escalada. “Meu sistema imunológico já estava debilitado pela constante exposição à falta de oxigênio. Eu desisti e fiquei no acampamento para tentar me recuperar. Caso algo saísse errado, eu ficaria como alpinista reserva”, diz.

Haveria apenas dois acampamentos: o 1° seria a 5.250m e o 2°, a 5.900m, no colo entre o Huascarán Norte (6.654m) e o Huascarán Sul (6.768m).

Os dois acampamentos já estavam montados. O acampamento 2 seria o ponto de partida para o ataque final ao cume. Com ventos fortes, entre 60 e 80 km/h e a temperatura marcando até 40 graus negativos, o grupo iniciou o ataque final à meia-noite do dia 8 de agosto e, após oito horas seguidas, chegaram ao cume do Huascarán Sul.

Cegueira – Durante a descida, com o tempo péssimo, o Dayen perdeu seu visor na neve, e passou cerca de dez horas com os olhos expostos à uma claridade cegante.

Seis horas depois o grupo chegou ao acampamento 2. “Logo que cheguei não senti nada. Acordei no meio da noite com os olhos ardendo muito”, diz Dayen. “Pela manhã já estava completamente cego”, conta.

Os dois peruanos o ajudaram a descer até o acampamento-base-avançado, onde um pára-médico já o esperava. De cavalo, Dayen foi levado até o vilarejo de Musho, onde uma viatura da unidade de resgate o aguardava.

“Fui levado para Huaraz, onde permaneci por dois dias”, conta Dayen. O diagnóstico foi de queratinia actínica, uma queimadura das córneas causada pela exposição excessiva à claridade, porém, totalmente reversível. O brasileiro teve de manter seus olhos completamente tapados com curativos por uma semana.

De volta para casa, os dois montanhistas já fazem planos para a próxima aventura. “O desafio de escalar um lugar onde poucas pessoas estiveram é fantástico”, diz Dayen. Porém, o que mais motiva os dois jovens é a possibilidade de marcar o nome do Brasil, escalando uma montanha nunca antes escalada por brasileiros. “Não tem graça escalar uma montanha já escalada por todos”, conclui Rodrigo, que relata suas expedições, junto com seu parceiro Dayen, no site www.altaatitude.com.br

Este texto foi escrito por: Romena Coelho