Passo del Viento (foto: Arq. Antonio Cavalcanti)
Antonio Cavalcanti pratica escalada em rocha no ES e RJ. Em 2005 explorou algumas vias de escalada na região de Yangshuo, no sudoeste da China, local de maior desenvolvimento deste esporte na Ásia. Ainda no mesmo ano, participou de um curso de escalada em gelo na Bolívia. Em 2006 fez uma travessia no Campo de Gelo Patagônico Sul, passando pela Argentina e pelo Chile, como reportado nesta matéria.
Foram cerca de 70 kms percorridos, dos quais 40 sobre neve e gelo, em sete dias. Cruzamos bosques, glaciares, gelo e neve, por paisagens deslumbrantes. Muitas vezes encordados, usamos crampons nos glaciares e raquetes de neve no campo. Por duas noites dormimos sobre o gelo, com direito a cavar cova e construir muro de proteção contra o vento – nosso “bunker”. Uma aventura única, num local absolutamente selvagem e perto do Brasil.
A prática do trekking nos dá a oportunidade de conhecer lugares únicos e selvagens deste nosso grande planeta. Na Patagônia Austral, entre os paralelos 48 e 51, o Campo de Gelo Patagônico Sul separa a Argentina do Chile. O vento proveniente do Pacífico, ultrapassa os fiordes chilenos, e tem sua umidade absorvida por essa massa gigantesca de gelo de 400 km de comprimento máximo por 80 km de largura máxima, deixando as terras mais baixas a leste, as estepes patagônicas argentinas, com um clima quase desértico.
É um imenso campo de gelo, que transborda em inúmeros glaciares, entre os quais um dos mais famosos do mundo, o Perito Moreno. Nele salpicam inúmeras montanhas, diversas ainda sem nome, onde o homem nunca esteve. Na borda argentina do campo, erguem-se picos de granito, de mais de 1.500mts da base ao cume, considerados por diversos escaladores, os mais belos do planeta, como o Fitz Roy e o Cerro Torre. O campo é uma das regiões mais inacessíveis e menos exploradas do mundo.
Somente em 1999, após dezenas de tentativas, um grupo de andinistas chilenos conseguiu atravessar pela primeira vez o campo de gelo de norte a sul, numa expedição que durou 91 dias e exigiu 4 anos de preparação.
Em janeiro de 2006, um verão com temperaturas recordes em terras brasileiras, me lancei numa das travessias clássicas do campo sul. Parti para o povoado argentino de El Chálten (500 habitantes), onde contratei uma expedição na qual me juntaria a dez europeus, entre espanhóis, italianos e ingleses, a maioria com trekkings no Nepal e Paquistão registrados no currículo.
Foram cerca de 70 kms percorridos, dos quais 40 sobre neve e gelo, em sete dias. Cruzamos bosques, glaciares, gelo e neve, por paisagens deslumbrantes. Por duas noites dormimos sobre o gelo, com direito a cavar cova e construir muro de proteção contra o vento. No terceiro dia ficamos presos no acampamento, enquanto uma tempestade de neve nos açoitava.
Breve diário da travessia – 1º dia: Entrada norte do Parque Nacional dos Glaciares. Subida do vale do Rio Eléctrico, acampando no Lago Eléctrico sob muito vento e chuva.
2º dia: Com um clima mais ameno, subimos o Paso Marconi, por pedras, glaciares e neve, ao final do qual acampamos, já sobre o gelo.
3º dia: Forte tormenta de neve, que impediu o prosseguimento da expedição.
4º dia: Adentramos o campo de gelo, onde o tempo melhorou e a paisagem se transformou. Caminhamos com as raquetes, cruzando com outras expedições, adentrado o território chileno, até a altura do Circo de los Altares.
5º dia: Continuamos no campo até a entrada do Glaciar Viedma, retornando à Argentina. Do campo avistamos ao longe os maciços que marcam os glaciares Perito Moreno e Upsala, já nas cercanias de El Calafate. Paramos para dormir num bivaque, na lateral norte do glaciar.
6º dia: Partimos para o Paso del Viento, passamos pelo Glaciar Túnel, cruzamos o rio homônimo e chegando ao Lago Toro, nas proximidades do qual acampamos.
7º dia: Caminhamos pelo vale do Rio Túnel, cruzamos a interminável Loma del Pliegue Tumbado, para chegarmos à El Chaltén.
Campo de gelo – O campo de gelo é uma planície branca de perder de vista, salpicada, aqui e ali, por montanhas nevadas. É um mundo diferente, sem vegetação, sem água, sem vida, mas de uma beleza indescritível. É um cenário próximo do que encontraríamos nos pólos, porém numa latitude menos elevada.
Saímos do campo de gelo, onde a vida praticamente inexiste, passamos por glaciares, onde o gelo cede paulatinamente lugar às rochas, depois percebemos a chegada de uma tênue vegetação rasteira, seguida de rios, lagos, canto de pássaros e finalmente os bosques sub-antárticos.
O condicionamento físico tem que ser excelente. Mesmo com um staff de três guias e três carregadores, tínhamos que carregar tudo o que não fosse de uso coletivo, inclusive os crampons e as raquetes de neve. Assim nossas mochilas pesavam 20 a 25 kgs, impactando em nossas pernas e costas, tanto nas subidas como nas descidas.
Roupas e equipamentos apropriados para a neve são indispensáveis. E no campo de gelo, nada seca, exigindo todo o cuidado para proteger as camadas secas das roupas e a parte interna das botas de gelo, além do saco de dormir. A alimentação, fornecida pela empresa contratada, era espartana. Por sorte, dividi a tenda com dois italianos, um dos quais cozinhava muitíssimo bem, com os poucos recursos dos quais dispúnhamos.
Quando acampávamos sobre o gelo, a água, tanto para beber como para cozinhar, era obtida do gelo derretido no fogareiro. Uma curiosidade é que nosso organismo absorve muito pouco da água obtida diretamente do gelo, se ingerida pura, pois a química celular exige a presença de sais minerais. A boa notícia é que basta acrescentar um sache de chá ou mesmo um refresco em pó para garantir a retenção de líquido.
As temperaturas, por si só, não foram um empecilho, variando entre 10 C e 5 C. Entretanto, a umidade extrema e o implacável vento patagônico, levavam a sensação térmica a uma situação de desconforto. O clima na região é um dos mais instáveis do mundo, com tempestades vindas do Pacífico. Tanto que entre ventos, chuvas e tempestades de neve, tivemos apenas três dias de tempo realmente limpo.
Lugar único – Depois de horas de caminhada sobre neve, gelo e pedras, com 25 kgs nas costas, quando o guia diz que só falta uma subidinha … (que você sabe que vai durar mais umas duas horas) vem a inevitável pergunta: “O que estou fazendo aqui!!!???”
As paisagens são magníficas, um deleite para os olhos, mas os sacrifícios são enormes. Uma análise do custo-benefício certamente descartaria tais empreitadas. A resposta transcende a racionalidade, e talvez se albergue naquela parte do espírito ou da mente humana que nunca satisfeita, está sempre em busca de algo novo, o prazer do desafio que supera a dor física ou a dificuldade técnica.
Diante das dificuldades de nossa vida cotidiana, tanto no viés pessoal como no profissional, sempre me faço lembrar que já enfrentei situações bem mais difíceis, que exigiram “sangue-frio” diante do risco, superação diante da exaustão, técnica e criatividade diante do impresvisto.
Onde contratar – As expedições podem ser contratadas junto às seguintes empresas, onde se pode também alugar parte dos equipamentos necessários:
. Patagônia Mágica: tel. 54-2962-4930066
. Casa de Guia: tel. 54-2962-439118; www.casadeguias.com.ar
. Fitz Roy Expediciones: tel. 54-2962-493017; www.fitzroyexpediciones.com.ar
Este texto foi escrito por: Antonio Cavalcanti