Tribo Barra Velha: trecho de areia mais díficil. (foto: Arquivo pessoal)
Enquanto arrumava a minha bagagem, refletia sobre a caminhada que iria realizar. Um pouco ansioso, questionava em todos os sentidos as minhas condições físicas para percorrer sozinho aqueles pouco mais de 80 km por entre belas praias. Me refiro ao Trekking do Descobrimento, na Bahia.
Parti de São Paulo em um ônibus com destino à Itamaraju (BA), numa aventura que durou 27 horas. Em Itamaraju, embarquei novamente para Cumuruxatiba. Foram mais 3 horas até lá, passando por Prado, incluindo também uns 32 km de estrada de terra.
Em Cumuruxatiba, não pude notar mais do que um povoado de pescadores, pois já escurecia. Levantei bem cedo para uma rotina de toda a caminhada: fotografar o tão parecido e diferente sol de todos os dias. Percebi, então, que a simpática Cumuruxatiba era mais que um povoado. Além de bela, tinha um comércio diversificado e uma estrutura de pousadas e restaurantes.
Lá conheci Dona Rosinha, uma gaúcha, que tinge artesanalmente, com chimarrão, belas peças de roupas de praia. E ainda o pescador Antonio Carlos, morador antigo, conhecido e respeitado na região, que utiliza o seu barco também para passeios pela reserva extrativista da marinha do Corumbau.
A maré – Chegou então, a hora de subir a Bahia. Parti e percebi um fenômeno que já me fora comentado – a grande diferença entre a maré baixa e alta. Aliás, na língua indígena, este é o significado de Cumuruxatiba. Bastaram somente algumas horas para que a faixa de areia aumentasse em mais de 200 metros.
Logo nas primeiras curvas do litoral, encontrei uma das falésias que iria rever durante vários pontos da caminhada. Ao me aproximar daquela imensa barreira, a areia nas cores preta, amarela, vermelha e branca me chamou a atenção. Outra atração foram as formas das rochas que, com a ação do mar e do vento em dezenas de anos, resultaram em obras de arte da natureza.
Bastaram alguns quilômetros para que eu percebesse que tais praias realmente eram desertas. Cada vez e tornava mais raro avistar pegadas de alguém, a não ser as de alguns simpáticos moradores locais, pescadores, índios ou outros raros viajantes que compartilhavam do mesmo prazer de simplesmente caminhar, admirar e esquecer de tudo o que deixamos.
De Cumuruxatiba até a barra do Cahy foram aproximadamente 14 km. Chegando lá, entrei no Parque do Descobrimento e procurei conhecer seus arredores. O monte Pascoal é visível e localiza-se há alguns quilômetros a noroeste dali.
Ao atravessar a foz do Rio Cahy, com a maré ainda baixa, inesperadamente me deparei com uma grande cruz na areia. Era a cruz do marco do Descobrimento do Brasil. Naquele instante solitário e reflexivo, me aproximei daquela cruz e imaginei grandes e antigas embarcações ao horizonte por detrás dos arrecifes.
Os 17 km existentes entre a Barra do Cahy e o Corumbau foram transpostos com um pouco de dificuldade. Em um descuido, me contundi e sofri um pouco. Entretanto, as belas paisagens me atraíam tanto que aliviaram o latejo do meu pé.
A Ponta do Corumbau já se destacava desde Cumuruxatiba. Lá existe uma pequena e agradável vila de pescadores com seus traços e originalidade bem preservados, onde também está situado o farol e a base extrativista da marinha do Corumbau. Por acaso, me dirigi a um senhor que me olhava de uma janela de forma serena. Mas por trás da aparente serenidade daquela criatura estava a vitalidade e inquietude de uma pessoa querida na região: o senhor Manoel Ulisses Ramos Deocleciano, ou melhor, senhor Ulisses.
A lenda do tubarão – Com pouco mais de 60 anos de idade, quase todos vividos ali, muitos filhos e netos e muitas, mas muitas histórias contadas com grande entusiasmo, esse simpático e animado morador conseguiu me prender por algumas horas para ouvir com muita atenção o que me dizia. Dentre todas as histórias contadas, uma me intrigou muito – a de um grande tubarão que engoliu uma jumenta de uma só vez. Pode isso?
Com muita hospitalidade, ele me convidou para conhecer o farol, já que a chave e a guarda do mesmo foi passada de pai para filho, com o consentimento da Marinha. Agradeci o convite e, antes que fosse embora, ele não hesitou em mostrar a sua coleção particular de jogos e bonecos que ele mesmo criou. Raízes esculpidas pelo mar. E encerrou o show com uma espécie de acrobacia e contorcionismo, que daria inveja a alguns garotos por aí.
Após a boa e recompensadora conversa, em meio a uma criançada que se agrupou, pedi licença e decidi almoçar pelos arredores. Fui embora com uma miscelânea de histórias, contos e boa energia na mente.
Logo, na barra do Rio Corumbau, pedi para um menino que me levasse de canoa para o outro lado em troca de um “caiambá” (dinheiro na língua indígena). O pequeno José Roberto me fez essa gentileza. Apesar da boa vontade do menino, encaramos um fracasso na primeira tentativa, pois a pequenina canoa começou a afundar, me restando pular rapidamente para a beira do rio. Tentamos novamente com uma canoa maior e realizamos a travessia em meio a muitos risos.
Até Caraíva eram cerca de 17 km. Na Tribo Barra Velha – a mesma dos judiados índios Pataxós, que há 500 anos atrás recepcionaram a polêmica chegada dos europeus, passei pelo trecho de areia mais difícil. Para piorar, com a maré cheia.
Uma grande seqüência de lombadas de areia fofa e inclinada serpenteava criando um magnífico visual. Ao chegar às redondezas da tribo, conversei um pouco com o amigável índio Caboclo. Depois de saber um pouco da questionável situação da tribo, prossegui à Caraíva.
Dali para frente, as condições para a caminhada melhoraram um pouco. Caminhei com a maré mais baixa sobre um barreira de arrecifes, que se alternavam com trechos de areia, sempre acompanhado de um pássaro preto e branco chamado pelos locais de regaça. Uma ave curiosa, que além de bonita, sassaricava pelos arrecifes procurando o seu sustento.
Toque-toque a Trancoso – Caraíva não tem luz elétrica, a não ser a de geradores. Suas ruas são de areia, estreitas e não circulam veículos, a não ser algumas carroças tracionadas por animais. De Caraíva até Curuípe, percorri aproximadamente 10km, incluindo a bela falésia da ponta Toque-toque. Para ultrapassá-la, basta subir a trilha, onde é possível admirar um o belo visual do mar e do último trecho então percorrido.
A praia do Espelho, em Curuípe, possui poucos restaurantes e pousadas, mas suficientes para o pequeno e charmoso local. Com coqueiros em frente ao mar em um belo gramado e a brisa, torna-se um convite para se degustar alguns pratos típicos.
No outro dia, parti para percorrer os últimos 23km até a histórica Trancoso. Eu fazia aniversário naquela data, e por coincidência, era o objetivo final de minha gratificante missão.
A lenda revive – Parecia coisa do destino pois, ao atravessar o rio, fiquei encantando com um senhor, morador da única casa existente ali. Solitário, ele arrumava sua rede de pesca. Ao me aproximar, procurei conversar e ao mesmo tempo não atrapalhar seu digno trabalho. Depois de uma amistosa conversa, ao perguntar o seu nome, ele me respondeu: Olegário. Me surpreendi, dizendo que era o mesmo nome de um dos personagens da história do tubarão. Ele afirmou ser realmente o protagonista daquela curiosa história que eu tinha ouvido pela primeira vez em Corumbau.
Contou ele, que há uns dez anos atrás, ao atravessar o rio com a jumenta e com o amigo Telezinho, foram surpreendidos com os fortes movimentos do pobre animal ao fundo. Assustados, achavam que ela estava com dor de barriga e vencidos pela força contrária, soltaram o cabresto, pois poderiam ter a canoa com o carregamento de cana de açúcar virada. Pobre jumenta.
Um dia depois, um pescador com boas redes estendidas na barra do rio, capturou dois grandes tubarões-jardineiras. Ao abrirem a barriga dos grandes peixes, surpresos encontraram o animal quase intacto. Rumores correram por toda a região até Porto Seguro e algumas piadas persistem até hoje. Como a do momento em que, zombando, dizem que a jumenta saiu da barriga furiosa distribuindo coices para todos os lados… História de pescador ou não? Todos a contaram com semelhante veracidade e humor…
Últimos quilômetros – Conforme eu contornava as últimas curvas de Itaquena e Itapororoca, percebia o surgimento de pessoas e algumas estavam naturalmente como vieram ao mundo. A cada passada, aumentavam as lembranças e recordações dos lugares e pessoas que conheci. Finalmente avistei Trancoso e caminhei os dois últimos quilômetros, não me contendo em emoção.
Cheguei à praia dos Coqueiros e subi o caminho que leva ao quadrado. Comemorei a data e a missão cumprida, com um animado casal de turistas que conheci durante o jantar, ao lado do simbólico e badalado Quadrado. Segui para Porto Seguro e, então, me despedi da Bahia. Embarquei para São Paulo, feliz, ainda solitário e, acredito, um pouco mais humano.
Felizmente, retornei a Bahia no último Réveillon para repetir a caminhada. Desta vez, guiando um grupo bem animado. Foi uma experiência também emocionante e muito divertida, mas essa é uma outra história… Um forte abraço, boas caminhadas e o importante é estar feliz!
(*) Marco Bortolusso escreveu especialmente para o Webventure e realizou esta viagem pela Pisa Trekking. Hoje é guia de ecoturismo para algumas agências de São Paulo. É membro do CEG Centro Excursionista Gravatá – grupo que atua em projetos de cunho social, ambiental e desportivo – e assessor de imprensa da academia de escalada Climbing.
Partida: Cumuruxatiba (BA)
Como chegar:
De ônibus: pode-se pegar um ônibus interestadual até Itamaraju (BA). Na rodoviária da cidade, pega-se um ônibus local para Cumuruxatiba (BA);
De avião: o aeroporto mais próximo é Porto Seguro (BA), cidade que corresponde quase ao fim do percurso. De lá, pode-se ir de ônibus para Cumuruxatiba.
Distâncias percorridas a pé
Total: 84 km.
De Trancoso, pega-se um ônibus local até Arraial da Ajuda. De lá, atravessando pela balsa, chega-se a Porto Seguro.
Quem leva
Pisa Trekking (www.pisa.tur.br)
Onde dormir
É importante ressaltar, que todos os lugares visitados são geralmente de estrutura simples e as vezes precária, apesar da existência até de alguns resorts. Os preços também variam muito.
Onde comer
O ideal é carregar um kit “mata-fome” não-perecível, pois não existem lugares para se comprar alimentos entre um ponto e outro do trajeto iário. E nem todos os pontos de pernoite possuem um comércio local – geralmente pequeno e simples. Na barra do Cahy e em Curuípe não existem até então padarias ou mercearias. Há restaurantes em todos os locais de pernoite. Os preços de um prato simples também variam entre 8 a 20 Reais, conforme a praia.
Não perca…
Atenção
Este texto foi escrito por: Marco Bortolusso*
Last modified: abril 9, 2003