“Havia na sala de jantar de minha avó, um armário com porta de vidro e, dentro dele, um pedaço de pele. Não passava de um pedacinho, mas era espesso, áspero, com chumaços de um pêlo avermelhado e grosso. Estava pregado a um cartão por um alfinete enferrujado. No cartão, havia algo escrito com tinta negra, esmaecida, mas eu era então criança demais para ler.
– O que é isso?
– Um pedaço de brontossauro. (…)
Aquele brontossauro específico vivera na Patagônia, uma região da América do Sul, no outro extremo do mundo. Há milhares de anos, caíra dentro de uma geleira, deslocara-se montanha abaixo num prisão de gelo azul e chegara em perfeitas condições ao sopé. Foi lá que o primo de minha avó, Charley Milward, o Marinheiro, o encontrou.”
Por causa deste trecho do livro de Bruce Chatwin, que já comentei nas Dicas de Livros, começou minha obcessão pela Patagônia. Paul Theroux, famoso pelos seus livros de viagens, vê a América do Sul com a forma de um funil, sendo a Patagônia o final onde todos os trota-mundos cedo ou tarde acabam se encontrando. Mas antes que a ponta de um funil, melhor visualizá-la como uma imensa pradaria cujas ondas cor de trigo mesclam-se, às margens do Estreito de Magalhães, com aquelas cor de chumbo, do mar verdadeiro, austral, gelado, varrido pelos williwas, ventos com força de furacão, 3.000 quilômetros ao sul de Buenos Aires.
Este enorme canal em cujas margens repousam antigas carcaças do que outrora foram garbosos veleiros, é tradicionalmente conhecido pelos marinheiros como um cemitério de navios. Ora assassinados pelo mar tempestuoso, ora propositalmente largados à morte por capitães mais interessados em apólices do seguro, estes enormes esqueletos de metal oxidado e madeira carcomida assustam os caminhantes com seus fantasmas e mascarões de proa, invocando visões de tempos passados em que estas rotas de navegação eram um tesouro secretamente guardado por reis e piratas.
Sugiro um plano ao leitor: uma rápida viagem à Patagônia descendo pela costa atlântica até a Terra do Fogo. Dali retornaremos pelo coração do continente ombro a ombro com a Cordilheira dos Andes.
O primeiro passo é levantar âncoras da cadeira. Pouquíssima bagagem: apenas aquilo que puder carregar consigo, um bom guia de viagem e, talvez, uma câmera fotográfica. Passando Buenos Aires, cruze as imensas planuras do Pampa rumo sul, observando as baleias e orcas da Península Valdez, visitando os vilarejos gauleses de Gaiman e Trelew e um pernoite para descanso em Puerto Deseado, frente à enseada onde Darwin e o capitão Fitzroy ancoraram o Beagle em 1833.
Constelação de fogueiras –
Na pracinha desta cidade encontra-se estacionado o histórico vagão de trem – hoje um simpático posto de informações turísticas – mas que foi nos anos 20 o quartel-general do Coronel Héctor Varela, líder das tropas que reprimiram a rebelião anarquista de 21 e do massacre de trabalhadores na Estancia La Anita, onde executou com suas próprias mãos o célebre gaúcho Facón Grande.
Continuando pela costa em direção ao sul, passe por Rio Gallegos – uma cidade que só não foi levada pelo vento devido às suas profundíssimas raízes coloniais – e, em seguida, atravesse de ferry o Estreito de Magalhães até a Isla Grande de Tierra del Fuego. Repartida ao meio entre Chile e Argentina, conta o cronista Antonio Pigafetta que Fernão de Magalhães assim a batizou em 1.520 quando avistou, desde o seu navio, uma infinita constelação de fogueiras permanentemente acesas pelos indígenas a fim de afugentarem o frio inclemente.
A partir de então os europeus não pararam mais de chegar, sentenciando à morte os donos daquela terra. Considerados um dos povos mais primitivos da terra, os Alacalufes habitavam os canais fueguinos e sobreviviam da pesca com arpão a partir de toscas canoas de cortiça, da coleta de mariscos, fungos e carne das focas e baleias que eventualmente chegavam à praia. O contato com os navegantes e os loberos, caçadores de focas vindos desde a Ilha de Chiloé, minou a saúde deste povo com o álcool e as doenças da civilização.
Em nossos dias apenas aqueles que embarcarem no navio que uma vez por semana liga Puerto Montt a Punta Arenas, atravessando a miríade de pequenas ilhas e fiordes que entornam esta rota marítima, com alguma sorte talvez veja a última família Alacalufe sobrevivendo da venda de canoas de brinquedo às embarcações que param para abastecer a pequena estação meteorológica de Puerto Éden.
Outros povos não tiveram mais sorte. Os Selk’nam, Yamanas e Tehuelches foram dizimados pelos garimpeiros e colonos que chegavam para ocupar as pastagens com os seus rebanhos de ovelhas, sendo literalmente caçados pelo exército e pelos novos senhores da terra. Sabe-se que grandes donatários chegavam a pagar por cada orelha recebida e é famosa a foto em que o romeno Julius Popper aparece com seus milicianos caçando os índios desnudos. Talvez por esquecimento ou honra ao (de)mérito, hoje Popper virou nome de loja em Ushuaia.
Um pouco mais a oeste o Lago Roca tem como homônimo o sobrenome do general que conduziu a partir de 1879 a campanha de extermínio dos índios Tehuelches, eufemisticamente chamada de Conquista del Desierto….
A cidade mais austral –
Mas voltemos a temas mais brandos. Considerada a cidade mais austral do mundo, Ushuaia é o vértice da nossa viagem. Guardiã do Canal de Beagle e cercada de montanhas permanentemente nevadas é ponto de parada obrigatório para os navios que seguem para a Antártida e os grandes transatlânticos que circunavegam a América do Sul. Belíssima estada, não esqueça de provar o cozido de centolla, o caranguejo gigante dos mares gelados, e visitar a Baía de Lapataia, ponto final da Rodovia Panamericana que vem desde o Alaska através da espinha dorsal do continente americano, desvanecendo-se em uma pequena praia de águas geladas e transparentes, em meio ao Parque Nacional de la Tierra del Fuego.
Hora de partir. Destino: Punta Arenas, Chile. Tomando rumo noroeste pare nesta cidade que já foi a mais rica do sul, num tempo em que era porto seguro para os cargueiros que vinham buscar a lã destinada às tecelagens inglesas que impulsionavam a Europa da Revolução Industrial. Poderosas elites regionais como as artistocráticas famílias Braun, Menéndez e Behety ali floreceram, explorando com a mesma avidez o negócio da lã e o labor do imigrante. Seu ocaso foi a abertura do Canal do Panamá em 1914, o qual tornou muito mais curtas e econômicas as rotas comerciais entre o Pacífico e o Atlântico, deixando às cracas e pinguins aquele ventoso porto chileno. Mas a cidade sobreviveu e hoje é o ponto mais urbanizado da Patagônia, onde figuram ricos exemplares de um passado colonial e formidáveis museus sobre a história da região.
Dali subimos para Puerto Natales, passagem certa de aventureiros e considerada o portal para Torres del Paine, um dos mais belos parques que já visitei e cuja caminhada de entorno pode ser feita em 10 dias, atravessando quatro regiões distintas: savana, deserto, montanha e floresta.
Um pouco mais ao Norte, já do lado argentino da fronteira, paramos em Calafate, região de extensas e coloridas planuras onde ainda em nossos dias obtém-se a melhor lã do mundo. Não por outro motivo Luciano Benetton é o maior proprietário de estâncias da Patagônia… Estas terras que hoje parecem tão bucólicas já foram esconderijo para ninguém menos do que Butch Cassidy, Sundance Kid e Etta Place, que ali se refugiaram num lugarejo chamado Cholila depois do grande roubo ao First National Bank of Winnemucca em 1900. Perseguidos desde os Estados Unidos pela implacável agência de detetives Pinkerton, conta a história que após um assalto ao banco de Rio Gallegos fugiram para a Bolívia, onde teriam sido mortos em um tiroteio com o exército…
Língua de gelo –
Lenda ou realidade, este não é o atrativo da Calafate, mas sim o grande Glaciar de Perito Moreno, uma língua de gelo que desce desde o cimo da cordilheira até planície, dividindo em dois um braço do Lago Argentino, permanentemente pontilhado de icebergs.
E já no caminho de casa encontram-se as duas últimas paradas: El Chaltén, onde está o Cerro Fitz Roy (3.405 m), carinhosamente apelidado de Rouba-Dedos pelos montanhistas e uma das mais difíceis escaladas da Patagônia e, logo depois, a não menos famosa San Carlos de Bariloche, com árduos e prazeirosos afazeres para todos os gostos… Assim, depois deste rápido périplo pelo Cone Sul, voltamos à nossa cadeira para merecido descanso… Mas apenas pelo tempo necessário para planejar a viagem de retorno.
Chile ou Argentina, tanto faz. O certo é que a simples menção da palavra Patagônia funciona como um irresistível imã a atrair aventureiros com vontade de ferro provindos de todos os confins do globo. Aliás, esta parece ser a qualidade obrigatória para adquirir a nacionalidade patagônica e, além do espírito livre, melhor ainda pertencer a algum clã de easy riders sem destino ou rumo certo. E se por acaso o candidato for garimpeiro, órfão, marinheiro, missionário, foragido ou escritor, ótimo, considere já carimbado o seu passaporte para esta terra de inacreditáveis histórias e horizontes infinitos.
Para saber mais, leia:
- Na Patagônia – CHATWIN, Bruce
- The Old Patagonian Express – THEROUX, Paul
- Travel Survival Kit: Argentina, Uruguay & Paraguay – Lonely Planet Guide
Este texto foi escrito por: João Paulo Lucena