
O trio em frente ao posto que virou abrigo por uma noite. Da esquerda para a direita: Shelly Débora e Caroline (foto: Arquivo pessoal)
Uma viagem, um desafio, uma superação. A travessia da Serra da Bocaina, através da Trilha do Ouro, é uma experiência perfeita para quem tem espírito de aventura mas pouca experiência em colocá-lo em prática.
Agora, esta travessia e todas as suas emoções, medos e realizações serão contadas pelas minhas companheiras Shelly Zaclis e Caroline dEssen para vocês. De todas as lições do caminho (acho que todos levam as suas) a mais importante me parece: um passo depois outro passo! Acompanhe, a partir de agora, todos os passos dessa aventura de 73 km em plena Mata Atlântica.
Então…vamos mesmo?, perguntou Débora. E foi assim, num momento de empolgação, que nasceu a idéia de fazer a Trilha do Ouro, na Serra da Bocaina (RJ). Queríamos um lugar não muito distante de São Paulo, com muito verde, cachoeiras e caminhadas. Queríamos fugir da cidade e nos abster um pouco dos problemas durante o feriado prolongado de 12 a 15 de outubro de 2000 .
No começo, várias pessoas com quem comentamos a viagem se animaram e disseram que viriam conosco. Um dia antes da aventura restávamos apenas Débora e eu. Como não podíamos gastar muito, resolvemos ir por conta própria, sem agência ou pacote fechado, apenas nós, nossos pés e muitas informações sobre a região.
Arranjamos barraca, saco de dormir, fogareiro, enfim: os equipamentos básicos de acampamento. Nossa primeira surpresa foi na rodoviária de São Paulo. Ao chegarmos lá encontramos a Shelly, terceira Webventureira da história. Oi meninas, tem problema eu ir com vocês? Passei no supermercado para comprar mais comida e se não couber na barrraca eu durmo do lado de fora…. Ficamos super felizes com a presença inesperada da Shelly. E lá fomos nós rumo a São José do Barreiro.
Os primeiros anjos – Pelos nossos cálculos, chegaríamos lá à noite e não fazíamos a mínima idéia de onde dormiríamos, nem de como subiríamos até a entrada do Parque, 30 km distante da cidade. Por sorte, no ônibus conhecemos nosso primeiro anjo da história. Reinaldo , guia do Parque foi muito simpático e ofereceu-se para nos ajudar no que fosse preciso.
Eram, aproximadamente, nove horas da noite quando pisamos em São José do Barreiro. Estávamos acompanhando nosso amigo até sua agência quando uma caminhonete parou. Olá meninas! Já têm transporte até o Parque? Estou com três vagas sobrando para amanhã de manhã.E como se não fosse sorte suficiente, ainda acrescentou Já têm onde passar a noite? Tenho um quarto aí no posto de gasolina. Se vocês não se importarem em dormir no chão, é todo de vocês!.
Ficamos um pouco desconfiadas, mas Reinaldo garantiu que conhecia o sujeito e não haveria perigo algum em nós ficarmos lá. Assim, felizes da vida por em menos de cinco minutos na cidade já termos resolvido todos nossos problemas, aceitamos.
O tal quarto do posto tinha apenas uma pia e nada mais. Colocamos nossos isolantes no chão e arrumamos nossas camas. De manhã, a caminhonete nos pegou e continuamos nossa aventura por uma estrada de terra, que por sinal, levantava muita, mas muita poeira mesmo. Cerca de sete cariocas muito divertidos, que não paravam de falar besteiras um só minuto, nos acompanharam na caminhonete. Em meio a muitas risadas e gozações terminamos o percurso na entrada do Parque.
Partindo para o desafio – Pegamos um mapa detalhado da trilha, olhamos a longa estrada de terra, colocamos as mochilas nas costas e tivemos a consciência de que naquele momento começaria nossa aventura. Ou seria um desafio?
Nosso primeiro destino era a Cachoeira de Santo Isidro, que segundo o mapa não ficava muito longe. Encontramos um grupo de jovens que também estavam indo para lá. Aproveitamos e pegamos uma carona. Essa primeira parte da caminhada não foi muito difícil. O que realmente dificulta alguns trechos são as bagagens e o sol forte. Devido à diferença de peso entre as mochilas, fazíamos um revezamento de meia em meia hora.
A cachoeira é realmente divina! Além de impressionar pelo seu tamanho, torna-se mais bela por desaguar numa piscina natural ótima para banho. Apesar da grande vontade de permanecer lá por horas, sabíamos que precisávamos partir logo, pois senão não alcançaríamos nosso primeiro ponto de pernoite: a Fazenda Barreirinha.
Começamos a caminhar, caminhar, caminhar…. Em uma bifurcação, descobrimos um atalho, que cortaria boa parte do caminho. Pegar ou não pegar o atalho? Depois de uma pequena reunião decidimos arriscar. Andamos, aproximadamente, dez minutos e nada de sairmos de novo na estrada. A possibilidade de termos nos perdido começou a cutucar nossas cabeças. Revimos o mapa e resolvemos seguir adiante. Para nossa sorte estávamos certas! De volta a estradinha de terra!
Já era quase meio-dia e o sol fritava nosso cérebro. Não queríamos admitir, mas a verdade é que já estávamos nos cansando e não tínhamos chegado nem na metade do caminho. Paramos em um riacho para reabastecer os cantis e nos refrescar um pouco. Ao recomeçar nossa caminhada surgiu um jipe do nosso lado.
“Filial do Paraíso – Dentro dele um casal muito simpático: Danilo e Ivone. Começamos a conversar sobre a trilha e a natureza, quando nos perguntaram: Vocês estão indo para Fazenda Barreirinha? Foram as palavras mais lindas que eu ouvi naquele momento… Respondemos que sim e ficamos na expectativa. Bom, se vocês não se importarem de ir um pouco apertadas, nós podemos dar uma carona… Subimos no jipe, alegres como nunca e continuamos nossa aventura.
Danilo já visitara a Serra da Bocaina diversas vezes e acabou tornando-se nosso guia particular. Danilo fazia questão de dizer “Isso aqui é uma filial do paraíso.”
Chegando à fazenda, armamos a barraca e preparamos a comida. É incrível como após um dia de caminhada alimentos como miojo, atum, biscoito nos parecem verdadeiros banquetes.
A noite chegou e embaixo de muitas estrelas conversamos um pouco na varanda. O sono e o cansaço não tardaram em nos dominar e rapidamente estávamos na barraca dormindo profundamente. Apesar da ótima noite de sono, um burro, que pastava do lado de nossa barraca tinha uns ataques histéricos e começava a berrar loucamente. As galinhas completavam a sinfonia.
Fim da moleza – Acordamos renovadas…Nada como uma boa noite de sono, mesmo que em uma barraca meio capenga. Despedimo-nos do Danilo, da Ivone, do Tião (proprietário da fazenda)….e pé na estrada. Para que lado é ? Depois de um rápido desvio, voltamos à rota certa e seguimos nosso caminho. Sempre revezando as mochilas, passamos por vales lindíssimos, pequenas fontes de água e muitas e muitas porteiras. A região é simplesmente deslumbrante.
Os vales, o silêncio e a paisagem bucólica trazem uma profunda sensação de paz. Entre uma porteira e outra, vários papos-cabeça…a vida, o trabalho, os amores, os desamores. É incrível como em um dia na intensidade de uma travessia conhecemos muito mais de uma pessoa do que meses trabalhando lado a lado.
Com algumas paradas para descanso, fomos seguindo até a região da cachoeira dos Veados, a mais famosa da Bocaina. Apesar do trecho ser considerado parada obrigatória, nós não poderíamos levantar acampamento por lá, pois ainda restavam vários quilometros até Mambucaba e jamais conseguiríamos completá-los no único dia que nos sobraria. Teríamos que descansar bem mais à frente, mesmo sabendo que seria difícil encontrar um local apropriado no trecho em mata fechada que estaria por vir.
Chegamos à margem do rio dos Veados lá pelo meio dia. Ainda víamos uns poucos retardatários recolhendo suas tralhas para seguir viagem. Pedimos indicação para a famosa cachoeira e lá fomos nós. Andamos, andamos, andamos até que conseguimos avistar a paisagem avassaladora: uma queda dágua enorme. Mas o estranho era que quanto mais andávamos, mais a cachoeira se distanciava de nós. Algo errado ! A sorte foi que cruzamos com um casal que vinha no sentido oposto e que nos falou que estávamos no caminho errado, caso quiséssemos nos banhar.
Ali, seguiríamos para a Trilha do Ouro. Para irmos até a cachoeira, teríamos que retornar e pegar um outro caminho. Neste momento, confesso que cheguei a hesitar. Será que vale a pena voltar tudo o que já tínhamos andando para tomar um banho de cachoeira ??? Definitivamente vale !!!!!!!
Nem tudo é tão tranqüilo – Antes de darmos meia volta, tivemos a brilhante idéia de deixar as mochilas escondidas atrás de alguns arbustos. Assim, teríamos que carregar somente na volta quando passássemos ali de novo rumo à Trilha do Ouro.
O desânimo de voltar era tanto…prometemos a nós mesmas que nunca iríamos confiar apenas na indicação dos outros. A partir daquele momento, passaríamos a checar nosso mapinha (já bastante destruído) em todas as situações. Como se ainda não bastasse, no caminho para a cachoeira, eu tive o desprazer de ver uma cobra atravessando a trilha. Aterrorizante !!
O pior foi ter a sensação de que as coisas estavam começando a dar errado…Até agora tudo tinha sido tão perfeito…Onde estariam os nossos anjinhos? Finalmente chegamos à cachoeira. Que delícia! Hora do almoço e do merecido descanso. A vontade era de ficar estendida nas pedra, ouvindo o forte barulho das águas por horas a fio, mas não podíamos, ainda tínhamos muitos e muitos quilômetros pela frente.
Voltamos à andança…Toda aquela sensação de dejà vu até que finalmente avistamos os arbustos que escondiam nossas mochilas. Colocamos nossas companheiras nas costas e seguimos viagem. O ritmo era tão intenso que nem tínhamos tempo para apreciar as belas paisagens. Estávamos mal acostumadas com a carona do Danilo no dia anterior. Depois de poucos quilometros, passamos a ver os famosos calçamentos, da época em que os escravos utilizavam a trilha para transportar o ouro vindo de Minas Gerais.
Desafios na Mata Atlântica – Após mais e mais andança, pontes extremamente balançantes e rios, ingressamos no trecho de mata fechada. Uma trilha repleta de pedras em meio a uma mata verde, densa e exuberante o caminho das pedras, literalmente. Mal sabíamos que aquela paisagem iria perdurar por vários e vários quilômetros.
Andávamos muito e de meia em meia hora parávamos um pouco para revezar as mochilas e beber um pouco de água. Impusemos a nós mesmas um ritmo bastante intenso, pois ainda tínhamos esperança de encontrar algum lugar civilizado para acampar.
O engraçado é que não cruzávamos com absolutamente ninguém. Todos os demais aventureiros estavam muito à frente, pois tinham iniciado a travessia na quinta-feira, um dia antes de nós. Muita lama, alguns tombos e pique total. Mas, aos poucos, o pique da Débora foi caindo. Ela estava com um tênis desapropriado, que machucava muito seus pés. Às vezes, o trekking traz situações complicadas, que demandam muita responsabilidade e tomada de decisão.
Não podíamos continuar durante muitas horas naquele ritmo, pois não queríamos correr o risco da Débora se machucar seriamente e não poder mais continuar. Mas, ao mesmo tempo, não podíamos simplesmente parar, pois não conseguiríamos chegar até Mambucaba no dia previsto.
Onde montar a ‘casa’? – Diminuímos um pouco o ritmo e fizemos alguns planos para aquela noite. Decidimos andar até às 18h e, a partir daí, passaríamos a procurar um lugar para montar o acampamento antes de escurecer. Andávamos rezando para encontrar uma clareira, um campo aberto, uma fazenda, mas….nada ! Só mata, mata, mata.
Deu 18h, uma garoa começava a cair e ainda não tínhamos escolhido nosso cantinho. Como ainda estava claro, ficamos tentadas a continuar andando para tentar achar um lugar mais confortável, mas, a voz da consciência falou mais alto…Podia escurecer a qualquer momento resolvemos parar na primeira clareira que víssemos e que desse para montar uma barraca sem comprometer muito a vegetação do local.
Por sorte, encontramos um lugarzinho que depois me pareceu perfeito. Era uma pequena clareira, com uma fonte dágua a poucos metros. Confesso que estava com muito medo.
A chuva podia apertar ou algum animal curioso se aproximar….Nessas horas, as piores coisas passam pela nossa cabeça! Mas, tudo correu super bem. Montamos a barraca, ligamos o fogareiro, preparamos nossa comida e cheias de lama mesmo caímos mortas na barraca para só levantar no dia seguinte. Nem o travesseiro de pedra na minha cabeça atrapalhou a grande noite.
Mais pedras rumo ao mar – Sete da manhã e as três de pé! Tinhamos que andar muito para estarmos no dia seguinte em São Paulo, de volta à Webventure. Recolhemos as coisas, mochilas nas costas e continuamos seguindo o caminho das pedras.
Depois de poucos quilometros, chegamos ao único ponto em que ficamos com dúvidas sobre o caminho. Em nossa frente, um rio, com algumas corredeiras que, segundo o mapa, deveria ser atravessado. À nossa esquerda, uma pequena trilha continuava.
Mais uma vez nos reunimos e, quando estávamos verificando a situação…cruzamos com um velhinho que parecia ter saído dos contos de criança, mais um dos nossos famosos anjos. Ele coordenava um grupo de mulas que transportavam bananas colhidas na região. Ele nos indagou se não tínhamos medo de andar sozinhas naquela mata, sem arma, sem faca…Mas, a Carol tem um mini canivete !
Onças e cavalos – Ele contou que poucos dias atrás teve que atirar em uma onça que tentou atacá-lo. Nós sabíamos que tratava-se daqueles velhinhos loucos por uma boa aventura para contar, mas demos graças a deus de termos cruzado com ele somente no último dia. Depois de algumas fotos do velhinho e das mulas, seguimos nosso caminho, atravessando o rio com água quase na cintura.
Chegando à outra margem, logo percebi que a Débora reparou na mesma coisa que eu. Ambas ficamos em silêncio, mas aterrorizadas: um rastro de sangue no chão. Preferi não comentar nada, nem ficar pensando besteiras… Por sorte, poucos metros à frente, veio o alívio: um lindo cavalo levemente machucado deixava escorrer um pouco de sangue pelo chão. A único porém foi conseguir ultrapassar o cavalo naquela trilha estreita, com todas as mochilas e penduricalhos que triplicavam o nosso tamanho.
Confesso que já astava um pouco enjoada daquela mesma paisagem. Dissecava o nosso mapinha e sonhava com o momento em que chegaríamos naquela região cheia de desenhos de casinhas. Queria ver gente ou ao menos uma estrada, qualquer coisa. E quem sonha e anda muito realiza seus desejos. Depois de um longo trecho de bananal, chegamos à estrada de terra que levaria à Mambucaba.
Que bom ver aquele céu azul, todo aberto, o sol batendo novamente….Depois de alguns metros, resolvemos parar para descanasar e nadar um pouco no rio Mambucaba, que corria paralelamente à estrada. Aproveitamos para banhar também nossas roupas que estavam repletas de lama e fazer um pequeno lanchinho. Um nativo veio nos eferecer umas bananas da região. Uma delícia !
O fim da jornada – Acho que depois de tanto andar, estávamos com a sensação (ou com o desejo!) de que o final da travessia estava logo ali. Estávamos redondamente enganadas. Ainda andamos muito, muito, até que finalmente nos rendemos à carona da combi que passa pela estradinha, levando as pessoas até o centro da cidade. O motorista nos deixou bem na frente da Rio-Santos, onde pegaríamos o ônibus para Parati e de lá para São Paulo.
Porém, antes disso, tentamos ligar para o Pasco e para o Roger, outros Webventureiros, para tentar arrumar uma carona, pois eles estavam passando o feriado em Ilha Grande. Eles teriam que passar por Mambucaba de qualquer forma para voltar para São Paulo. Mas a tentativa foi frustrada. Pegamos o ônibus e lá estávamos na rodoviária de Parati, tentando arrumar uma passagem para São Paulo. Até este momento, ainda não tínhamos nos ligado que era feriado e que Parati fica super lotada de paulistas.
Imploramos para os motoristas arranjarem algum lugarzinho dentro do ônibus, no bagageiro, onde fosse…Falamos que precisávamos estar trabalhando no dia seguinte pela manhã….mas, nada.
Quando estávamos no orelhão tentando falar novamente com o Pasco ou com o Roger, os anjinhos que tanto nos ajudaram na Bocaina resolveram dar as caras novamente…Um dos motoristas veio nos dizer que haviam três desistências e que poderíamos comprar os lugares. Justamente três! Perfeito!
Apesar do trânsito que pegamos, até a viagem de volta teve seu charme. Na parada para um lanchinho, a Carol encontrou dois amigos do cursinho, sendo que um deles tocava violão. Nada mais perfeito, apertamo-nos no fundão e ficamos cantarolando e relembrando até São Paulo. Vi tanta areia, andei….Da lua cheia, eu sei…Uma saudade imensa (…).
Na rodoviária nos despedimos e cada uma foi para sua casa. Precisávamos descansar pois no dia seguinte teríamos muita aventura para contar para nossos leitores.
Este texto foi escrito por: Débora de Cássia, Caroline d’Essen, Shelly Zaclis
Last modified: março 13, 2001